sábado, 1 de fevereiro de 2014

'Não me consigo lembrar de uma única coisa espantosa que tenha visto em primeira mão e que não tenha relacionado de imediato com um filme ou programa televisivo. Ou com um maldito anúncio. Vocês conhecem aquela horrível cantilena do enjoado: já tinha visto.
Eu já vi literalmente tudo, e o pior, aquilo que me faz querer rebentar com os miolos, é que a experiência em segunda mão é sempre melhor. A imagem é mais nítida, a visão mais penetrante, o ângulo da câmara e a banda sonora manipula as minhas emoções de uma forma que a realidade já não é capaz de fazer. Já não sei se somos realmente humanos nesta altura, aqueles de nós que são como a maior parte, e que cresceram com televisão e filmes e agora a internet. Se somos traídos, sabemos as palavras que devemos dizer; quando um ente querido morre, sabemos as palavras que devemos dizer. Se quisermos fazer o papel de conquistador, espertalhão ou idiota, sabemos as palavras que devemos dizer. Trabalhamos todos  partir do mesmo guião já muito batido. 

É um período muito difícil para se ser uma pessoa, uma pessoa a sério e real, em vez de uma colecção de traços de personalidade selecionados a partir de uma máquina de venda automática de personagens.

E se todos estamos a representar, não pode existir uma alma gémea, porque não temos almas genuínas.
Tinha chegado a um ponto em que parecia que já nada importava, pois eu não sou uma pessoa a sério e os outros também não.

Teria feito o que fosse preciso para me sentir outra vez real.' 


Em Parte Incerta, Gillian Flynn

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